A alienação fiduciária de bens imóveis rurais é um tema relevante e complexo, especialmente no contexto das operações financeiras envolvendo títulos como a Cédula de Crédito Bancário, Cédula de Produto Rural e Cédula Imobiliária Rural. Esses instrumentos financeiros são regulamentados por legislações específicas, como as Leis nº 13.986/20, nº 8.929/94, nº 14.421/22, que estabelecem diretrizes para a constituição de garantias e a proteção de direitos de todas as partes envolvidas. Contudo, se tratando de constituição de alienação fiduciária de bens imóveis para outros institutos que não os acima indicados, utilizaremos como base a lei nº 9.514/97, CPC/2015 e a CF/88.
Alienação Fiduciária e Pequena Propriedade Rural
A Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso XXVI, e o Código de Processo Civil (art. 833, VIII), garantem a impenhorabilidade da pequena propriedade rural, desde que seja trabalhada pela família e utilizada para sua subsistência. Tal proteção reflete o viés social da legislação brasileira, assegurando um mínimo existencial para os pequenos produtores rurais.
No entanto, essa impenhorabilidade pode ser mitigada em situações específicas, como nos casos em que a propriedade é oferecida como garantia. A Lei nº 8.009/90, que trata da impenhorabilidade de bens de família, prevê em seu art. 3º, inciso V, a possibilidade de penhora quando o imóvel é utilizado como garantia real, como no caso de hipoteca. Essa previsão, por analogia, também se aplica à alienação fiduciária.
O ato de oferecer um bem como garantia em uma alienação fiduciária, ainda que em benefício de terceiros, seguido pela tentativa de invocar sua impenhorabilidade, caracteriza-se um comportamento evidentemente contraditório por parte do garantido e essa conduta é rejeitada, ou ao menos deveria, pelo ordenamento jurídico brasileiro. Assim, diante da ausência de demonstração de eventual vício de consentimento quando da assinatura do contrato em que houve prestação da garantia em favor dos Devedores Fiduciantes/Alienantes, nos parece óbvia a necessidade de manutenção da garantia ofertada.
Contudo, embora existam julgados que defendam a fundamentação acima (em especial no tocante a imóveis considerados bem de família) a jurisprudência consolidada aborda questões relevantes sobre a alienação fiduciária de imóveis rurais. Em decisões recentes, como no REsp nº 1.940.297/MG, o STJ reafirmou que a pequena propriedade rural trabalhada pela família mantém sua impenhorabilidade, mesmo quando oferecida como garantia fiduciária.
Outra decisão importante foi proferida no caso TJ-MG - Agravo de Instrumento nº 2731919-89.2023.8.13.0000, em que o tribunal aplicou o princípio da dignidade do devedor para proteger a pequena propriedade rural, mesmo diante de alienação fiduciária. A interpretação considerou a indisponibilidade do direito real e o dever de boa-fé por parte das instituições financeiras, vejamos:
EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO ANULATÓRIA DE LEILÃO EXTRAJUDICIAL C/C INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS - PEQUENA PROPRIEDADE RURAL - IMPENHORABILIDADE - ART. 5º, XXVI, DA CRFB - INDISPONIBILIDADE DO DIREITO REAL - TEMA 961, DO STF - APLICAÇÃO ANALÓGICA COM BASE NOS MOTIVOS DETERMINANTES - PREVALÊNCIA DA DIGNIDADE DO DEVEDOR EM DETRIMENTO DA TUTELA DO CRÉDITO - MÍNIMO EXISTENCIAL - DIREITO BÁSICO DO CONSUMIDOR - VIOLAÇÃO DE DEVERES ANEXOS À BOA-FÉ OBJETIVA PELA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA - INDÍCIOS DE NULIDADE DO CONTRATO ACESSÓRIO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA - DISTRIBUIÇÃO ISÔNOMICA DOS ÔNUS DO PROCESSO - TRANSMISSÃO DA PROPRIEDADE - REGISTRO DO TÍTULO TRANSLATIVO - NÃO VERIFICAÇÃO. - A impenhorabilidade da pequena propriedade rural familiar, com assento constitucional (art. 5º, XXVI, da CRFB), foi reiterada em âmbito federal pelo Código de Processo Civil, em seu art. 833, VIII, dispondo que é impenhorável "a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família" - O Supremo Tribunal Federal (Tema 961) e o Superior Tribunal de Justiça já se manifestaram no sentido de que a pequena propriedade rural é aquela com área compreendida entre 1 (um) e 4 (quatro) módulos fiscais do município onde se localiza o imóvel e que, em se tratando de hipoteca, o oferecimento do bem em garantia não afasta a proteção da impenhorabilidade - Ainda que haja peculiar natureza jurídica entre as garantias hipotecária e fiduciária, em se tratando de direito indisponível, é de rigor a aplicação analógica da impenhorabilidade do bem dado em hipoteca ao bem cedido em alienação fiduciária em garantia, com base na ratio decidendi das decisões das Cortes Superiores que privilegia a dignidade do devedor em detrimento da tutela de crédito - Mesmo que a natureza do contrato firmado acarrete a transferência da propriedade, em caráter resolúvel, ao credor fiduciário, tal característica não pode ser desassociada do contexto de fundo, não havendo que se falar em comportamento contraditório por parte do devedor fiduciante, mas sim em descumprimento dos deveres anexos à boa-fé objetiva pela instituição financeira - Presentes indícios de nulidade do negócio jurídico firmado entre a instituição financeira e os agravados, dada a indisponibilidade do direito real sobre a pequena propriedade rural familiar, é necessária prudência para conduzir o deslinde do feito, promovendo-se uma distribuição equitativa dos ônus do processo, de maneira que sejam ponderadas a possibilidade de dano e a prevalência da dignidade do devedor sobre o direito ao crédito - Nos termos do art. 1.245, caput e p. único, do Código Civil, enquanto não se registrar o título translativo no Registro de Imóveis, o alienante de bem imóvel continua a ser havido como dono do imóvel. (TJ-MG - Agravo de Instrumento: 2731919-89.2023.8.13.0000, Relator: Des.(a) Tiago Gomes de Carvalho Pinto, Data de Julgamento: 29/02/2024, 16ª Câmara Cível Especializada, Data de Publicação: 01/03/2024)
Critérios para Constituição de Garantia de Alienação Fiduciária
Diante do longo debate que poderá ser travado quando estivermos diante da possibilidade de caracterização do bem ofertado em garantia como uma pequena propriedade rural, aconselhamos que antes de constituir uma garantia de alienação fiduciária vinculada a operações financeiras no segmento, é necessário observarmos os seguintes critérios:
Verificar o Módulo Fiscal: Identificar se a área do imóvel excede quatro módulos fiscais, limite que caracteriza a pequena propriedade rural, conforme o Tema 961 do STF.
Garantir Proporcionalidade: Nos casos em que apenas uma fração do imóvel será alienada, assegurar que a área restante continue atendendo aos critérios de pequena propriedade rural.
Identificar o Uso do Imóvel: Avaliar se o imóvel é utilizado para a subsistência familiar.
Verificar Propriedades Adicionais: Determinar se o proprietário possui outros imóveis rurais e se a soma das áreas respeita os limites legais.
Imóvel Único: Embora não seja condição absoluta para a proteção legal, a jurisprudência reconhece que a pequena propriedade pode ser protegida mesmo quando o proprietário possui outros bens.
Conclusão
A constituição de alienação fiduciária de bens imóveis rurais exige atenção a critérios legais e jurisprudenciais, especialmente no que se refere à proteção da pequena propriedade rural. O equilíbrio entre garantir o crédito e preservar o mínimo existencial para os pequenos produtores rurais é um dos principais desafios nesse contexto.
Advogados, instituições financeiras e produtores rurais devem trabalhar em conjunto para assegurar que as operações financeiras sejam conduzidas dentro dos limites legais, respeitando os direitos das partes envolvidas e promovendo a segurança jurídica.
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